sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

DOIS MIL E ONZE


Passagem do ano
Carlos Drummond de Andrade

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgará papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com
sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão esperás amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.

A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

In: A rosa do povo (1945).

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

LULA, VAI FAZER MUITA FALTA


Após oito anos de governo, o que resta absolutamente comprovado através do Presidente Lula, é que o maior inimigo das transformações políticas, sociais e culturais é o nosso próprio preconceito.

O Brasil não teria avançado tanto se, em 2002, nós tivéssemos agido como a atriz Regina Duarte, por exemplo. Tomada de medo e preconceito (o que em alguns casos perpassa o ódio), ela rejeitou Lula em TV aberta e teve o apoio de um número significativo de pessoas. Medo do que ele é? Do que ele representa aos privilegiados? Do que ele poderia fazer com o poder?

Quem, sentado em casa, poderia imaginar um homem de origem tão simples, ex-metalúrgico, gerindo uma nação tão rica e poderosa como o Brasil? Hoje, falar em origem simples chega a ser clichê, mas antes de Lula isso era pouco provável, tanto quanto rejeitável.

Refletir sobre o Presidente Lula e sua trajetória nos últimos oito anos é pensar, também, em como agimos diante do que nos é ‘diferente’. Os atos de preconceito nada mais são do que rejeição ao desconhecido. Uma assinatura da nossa ignorância.

Então, o nosso Presidente Lula precisou fazer um governo histórico e excelente para provar à população que sua origem e sua fala ‘incorreta’ não representam propriamente a sua vontade política ou a sua capacidade de transformação. O ex-metalúrgico, tradicionalmente ridicularizado pela mídia e pelas classes abastadas, deixa o governo daqui a dois dias como o Presidente mais bem aprovado do mundo. Sim, do mundo.

Lidou e lidará até o dia 31 de dezembro de 2010 com velhos ranços que o estigmatizaram como bêbado e burro. Não poderia ser uma unanimidade. Mas, para mim, sai do governo como a prova inequívoca de que os juízos de valor são frágeis demais para serem tomados como definitivos.

Os preconceitos contra o Presidente foram sociais e/ou culturais. Mas quantas outras pessoas não conseguem sequer conquistar espaços (ou conseguem a duras marteladas) por conta de preconceitos raciais, sexuais e religiosos, por exemplo? Lula, até o último dia de governo nos ensina, da forma mais digna possível, o quando podemos ser diferentes e – mesmo assim – caminhar juntos. Mostra-nos, através de seus atos, que pobres, incultos e burros, são aqueles que não conseguem enxergar nada além do pré-estabelecido. Vai fazer muita falta.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

FELIZ NATAL


Amigos e amigas: desejo que neste Natal a gente reflita bastante para tentar ser menos capitalista, menos moralista, menos vigarista, menos egoísta, menos pessimista, menos sexista, menos racista, menos mercantilista, menos machista e tente ser muito mais surrealista, mais ativista, mais otimista, mais socialista e mais abolicionista, ok?

Feliz Natal!

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

QUE VENHAM AS FÉRIAS!

Depois de certa ausência, aqui estou de volta ao BLOG. Entre mortos e feridos, salvaram-se todos. Sete provas nas últimas duas semanas. Agora me resta curtir as férias e aproveitar para colocar minhas leituras em dia e para ler alguns jornais: estive fora do mundo.

Mas os jornais lerei com moderação. O excesso de informações do mundo globalizado me angustia. Em que medida me interessa saber que um vulcão eclodiu no México ou, ainda, qual a importância de eu saber que um avião despencou no Paquistão? Ora, por favor, as coisas parecem não ter mais fronteiras. Logo eu que nasci em uma, sinto falta delas. Saber de tudo isso não me torna mais humano.


Como, por exemplo, aquele resgate dos mineiros chilenos. Não acompanhei muito, mas foi uma comoção nacional aquilo! Ao vivo, todos os jornais acompanhando, não se falava em outra coisa em todas as espécies de mídia (saiu um! saiu dois! agora mas um!). Tudo bem, pode ter sido algo espetacular tal salvamento, mas para mim é excesso, é desvio, é chatice pura. O que quero eu com os mineiros do Chile se aqui na rua do lado, em frente a um supermercado, tem uma família inteira (sim, inteira: mãe, pai e quatro filhos) morando na rua? Cadê o resgate pra eles?

Por favor, me poupem de eclosões na Ásia, matança na África, roubalheira na Europa. Isso tudo para mim é spam e meu cérebro tem filtrado há tempos.

Daí quando acontece algo nacionalmente relevante, nós já estamos saturados, cheios de informações, sem ânimo para comemorar ou questionar; para elogiar ou criticar. Por que ontem foi a invasão dos morros cariocas, mas amanhã vai ser a invasão dos morros da Chechênia. O jornalismo globalizado não tem mais critérios: tudo é informação, tudo é pauta.

Então, nas minhas férias, vou ler - com muita parcimônia - alguns jornais e colocar, de verdade, as leituras boas que me estão pendentes em dia. Vou tomar aquela cervejinha no fim do dia e ver a lua nascer, é lindo demais! Dar bola pros meus amigos, acender as luzes da minha árvore de Natal, colocar as roupas na máquina e depois estender, de repente fazer umas jantinhas, passar verniz naquele móvel, pregar aquele quadro. Enfim, todas essas coisas que - durante o ano letivo - as 24 horas do dia não dão conta de permitir que façamos.

C´est la vie! Que venham as férias! Que delícia é ter as noites livres!

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

AYER

Ayer

Ayer pasó el pasado lentamente
con su vacilación definitiva
sabiéndote infeliz y a la deriva
con tus dudas selladas en la frente

ayer pasó el pasado por el puente
y se llevó tu libertad cautiva
cambiando su silencio en carne viva
por tus leves alarmas de inocente

ayer pasó el pasado con su historia
y su deshilachada incertidumbre/
con su huella de espanto y de reproche

fue haciendo del dolor una costumbre
sembrando de fracasos tu memoria
y dejándote a solas con la noche.

Mario Benedetti