terça-feira, 30 de novembro de 2010

75 ANOS SEM FERNANDO PESSOA

Hoje é dia 30 de novembro de 2010. Há exatos 75 anos Fernando Pessoa morria em Lisboa. Para concluir a homenagem que lhe resolvi fazer, uno a um de seus poemas mais lindos a voz da maior intérprete da música brasileira, Maria Bethânia. Para encerrar este ciclo de Fernando Pessoa, então, compartilho com vocês Eros e Psique:


Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

Publicado pela primeira vez in Presença, n.os 41-42, Coimbra, maio de 1934.


sábado, 27 de novembro de 2010

DE QUE COR SERÁ SENTIR?



Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim.

Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueca. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.

Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou a crianca triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Marco, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.

No jardim que entrevejo pelas janela caladas do meu sequestro, atiraram com todos os baloucos para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginacão, ter baloucos para esquecer a hora.

Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do “Marinheiro” ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.

Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que me sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena - chia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.

Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar.

Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no correio amanha, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no “Livro do Desassossego”. Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.

As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.

Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.

De que cor será sentir?

Milhares de abracos do seu, sempre muito seu,

Fernando Pessoa.

P.S. - Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanha, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histero-neurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si-próprio que dele são tao características…

Você acha-me razão, não é verdade?

(Carta a Mário de Sá-Carneiro, enviada em 14 de março de 1916.)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

I KNOW NOT WHAT TOMORROW WILL BRING


Estimados amigos e amigas: no dia 29 de novembro de 1935, Fernando António Nogueira Pessoa foi internado no Hospital São Luís dos Franceses, em Lisboa, vítima de uma crise hepática provocada, muito obviamente, pelo excesso de álcool ao longo de toda sua vida. No dia 30 de novembro, aos 47 anos de idade, morreu. Nos últimos instantes de vida, pediu seus óculos e escreveu – no idioma no qual foi educado – a seguinte frase: I know not what tomorrow will bring.

Caro Pessoa, meu gênio mais fantástico e impecável, eu também não sei o que o amanhã me trará. Mas, agora, eu quero que todas as minhas fontes se voltem para tua obra e vida.

O CÉU DO INFERNO, então, a partir de hoje, reverencia o incrível e incomparável poeta Fernando Pessoa, cuja obra me é, sempre, plano de fundo existencial.

Para um primeiro momento, escolhi um parágrafo do texto Os Portugueses - A opinião pública em que o poeta diz:

“(...) Convicções profundas, só as têm as criaturas superficiais. Os que não reparam para as coisas quase que as vêem apenas para não esbarrar com elas, esses são sempre da mesma opinião, são os íntegros e os coerentes. A política e a religião gastam dessa lenha, e é por isso que ardem tão mal ante a Verdade e a Vida. (...)”

Também compartilho o poema Autopsicografia, que adoro:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

A única hora que tenho para escrever no BLOG é esta e já estou morto de cansaço e sono. Uma pena. Mas, por fim:

Tudo quanto penso,
Tudo quanto sou
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.

Tem como não amar?

sábado, 20 de novembro de 2010

MALDITOS MISERÁVEIS QUE AGORA COMPRAM CARROS

Advertência: o vídeo que exibimos nesta postagem contém cenas explícitas de ódio, preconceito e ressentimento. Seu protagonista é um certo Luiz Carlos Prates, colunista e comentarista da RBS TV de Santa Catarina. A propósito, se alguém achou que a forma de vida mais rasteira da televisão brasileira fosse Lasier Martins, Prates conseguiu a proeza de tomar-lhe o cetro.
As cenas abaixo foram exibidas no Jornal do Almoço barriga-verde, nesta segunda-feira, 15.

Pelo sim, pelo não, tire as crianças da sala.


Nota expropriada do CLOACA NEWS.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

VAMOS EM FRENTE



Eu me movo quando algo me atormenta. Quando os fantasmas estão expurgados e estou solto cara a cara com o singelo, daí não vale. O jogo para mim tem que ser sujo com a vida. Baixo. Eu funciono assim, desse jeito. Meu carvão é o fogo dos infernos metafísicos. A todo o vapor, lá vou eu quando minha caçamba está cheia de lixo. Sou uma esponja das inquietudes humanas. Não vacilo, meu negócio é a dor.

Cravada no meu peito a faca é minha corda. Boneco de corda movido a facada. Sangra vida. Escorre pelo meu peito como um rio de humanidades duvidosas. Jorra a baba, um simulacro de líquido pastoso a que chamam angústia. Nossa. Eu me movo quando algo me cega. Corda. Rins. Vasto é o campo da escuridão.


Mas agora vamos falar sério, sem liberdades poéticas. Hoje estava lendo um artigo do Dr. César Augusto Baldi que, dentre algumas reflexões, tratava do racismo institucionalizado em algumas esferas do poder brasileiro, capazes de inferiorizar negros e índios em pleno ano 2010. Daí eu comecei a pensar sobre o racismo, sobre o sexismo, o colonialismo, o imperialismo... Ah, se hipocrisia pesasse, meus caros, na balança da farmácia, não ia ter Globo Repórter que abarcasse a explicação da obesidade no mundo. ‘Vamos em frente’, eu disse ao autor do artigo: às vezes o que nos resta é tão somente fazer a nossa parte. Como beija-flores, enchemos o bico de água e colocamos as gotas lá, no incêndio florestal que é a nossa sociedade.

Pura ilusão esta de que estamos evoluindo. O mundo pós-moderno regride de forma proporcional ao aumento de sua estupidez, que está mais nítida do que qualquer high-definition já inventada pelo homem.

Sim meus amigos, esta é uma postagem pessimista, fria, feia, suja. E é difícil ser diferente em um mundo onde pouco se respeita o que é realmente essencial. O estado de anomia está formado, não adianta nem tentar correr. Fuma teu cigarro e apaga na testa da pessoa ao lado. Chegamos ao ponto em que o trágico virou risível e, pior, nos conformamos absolutamente com tudo. Jackass já não tem mais graça, nossa vida é mais bizarra.

(As telas que compõem esta postagem são de Paul Cézanne.)

sábado, 13 de novembro de 2010

UM CONTO

Ontem à noite, na estrada, de Porto Alegre para o Cassino, escrevi o meu primeiro conto. Minha primeira ficção. Já havia, em outros momentos, tentado escrever uma estória. Mas meus contos nunca tinham fim, nunca ficavam minimamente completos. Engraçado que este nasceu assim: escrito a lápis, dentro do ônibus, na coxa, com uma iluminação meio ruim e nas folhas que tinha alí, dentro da mochila. Vai saber. Compartilho com vocês e espero que gostem, dando a mim os descontos cabíveis, claro:


JUSTO E AMÉRICA

- Posso entrar?

- Não.

- Já entrei.

- Não é novidade você passar dos limites América.

- Justo, por favor. Eu só queria...

- Não América, quem quer agora é o sol.

- Eu sei que você...

- América, o sol, por favor.

(12 minutos depois)

- Ele já se pôs Justo, posso falar uma coisa?

- Sabe América, talvez este seja o motivo do meu isolamento nos últimos tempos. Você me conhece tanto que sinto vontade de contar para alguém que amo o pôr-do-sol, contar das minhas impressões sobre a velocidade com que ele parte pra Tóquio deixando Porto Alegre.

- Justo, não começa...

- Viu? Não começa? É isso América! Eu quero começar sim! Quero contar e não repetir as coisas. Você veio aqui, entrou no meu templo de um e meio por dois, cheia de tudo o que me farta, quando o que mais eu queria era beijar uma boca cheia de perguntas. Eu quero saliva nova América, eu quero descobrir. Sugar a baba de alguém e degustar como um vinho, tentando decifrar o novo sabor.

- Justo, às vezes...

- Não! Não tem às vezes nem nada disso. Depois de um tempo é foda América, porra. Depois de um tempo cadê a novidade? Quando você sair daqui, do meu templo, sei que você vai colocar aquele pijama esquisito de girafas e nuvens e tomar o seu copo de chá gelado light. Eu nunca entendi o seu pijama, aliás. Daí você vai apagar a luz do quarto, deitada na cama, esticando o corpo e alongando o braço esquerdo até o interruptor. Vai ligar a TV no Canal Brasil e, depois, com a mesma mão esquerda que apagou a luz vai tatear a cama procurando a minha mão. Vai encontrar e, daí, vai puxar meu corpo para te abraçar.

- Justo, você está...

- Não América. Você entrou no meu templo sem minha licença, agora aguenta no osso as minhas rusgas acumuladas. Nossa relação virou um fluxograma da DELL, entende? Um troço de louco isso e nem...

- Justo?! Você está vendo aquela estrela ali? (com a voz um tom acima da dele)

- Qual América? (de má vontade, em tom áspero)

- Ali ó... Assim, em diagonal com as três marias, está vendo? Alí!

- Aonde América? Que estrela?

- Me dá a palma da tua mão Justo. Assim ó. (ela ergue a mão dele em direção ao céu) Abre os dedos como se estivesse abanando pro céu. Não, não. Não abana! Fica com a mão parada. Entre este dedo e este: está vendo esta estrela?

- Sim. O que tem ela América?

- Eu só queria te mostrar uma novidade.

(ela sai da sacada do apartamento, fecha a porta de vidro para não entrar mosquitos na sala e vai correndo vestir seu pijama de girafas com nuvens)

terça-feira, 9 de novembro de 2010

YO ME VOY

“(...) E se a gente simplesmente reconhecesse que nosso re- lacionamento é ruim, e mesmo assim ficasse junto? Se admitisse que a gente enlouquece um ao outro, que está sempre brigando e quase nunca transa, mas não consegue viver um sem o outro, por isso aguenta tudo? Daí a gente poderia passar a vida inteira junto... infelizes, mas felizes por não estarmos separados. (...)”

Elizabeth Gilbert (Eat, Pray, Love – 2006).


'Como podemos ser infelizes e, mesmo assim, querer estar junto?' Perguntou-me uma amiga tão querida quanto provocadora e birrenta, e responder essa questão talvez seja tão difícil quanto ser infeliz e querer estar junto.

Nós somos um acúmulo: carnes, ossos, nervos, cartilagem, cutícula, córtex, medula, sabe? E isso é só a parte bacana da gente. Porque daí entra aquele papo da Chapeuzinho Vermelho: para que servem seus olhos vovozinha? Para que serve sua boca vovozinha? Para que serve seu pulmão, seu cérebro e suas unhas vovozinha? Puta: que guria de merda.

Acho que o estar junto infeliz, está relacionado a uma determinada falta de coragem. Nós não sabemos lidar muito bem com a solidão, mesmo que não saibamos direito o que ela é ou o que representa concretamente na vida da gente. Nós fugimos da solidão como um cristão do capeta, do demo, do coisa ruim. A gente foge do que nosso imaginário construiu ou, em alguns casos, do que nos foi implantado pelo imaginário coletivo. A gente foge da gente mesmo.

Mas... ser infeliz e estar junto não é solidão?


Que bobagem. Eu aqui querendo responder uma questão que... sei lá. Há uns dias atrás reencontrei um poema lindo do Pablo Neruda:

Ya no se encantarán mis ojos en tus ojos,
ya no se endulzará junto a ti mi dolor.

Pero hacia donde vaya llevaré tu mirada
y hacia donde camines llevarás mi dolor.

Fui tuyo, fuiste mía ¿Qué más? Juntos hicimos
un recodo en la ruta donde el amor pasa.

Fui tuyo, fuiste mía. Tú serás del que te ame,
del que corte en tu huerto lo que he sembrado yo.

Yo me voy. Estoy triste; pero siempre estoy triste.
Vengo desde tus brazos. No sé hacia dónde voy.

Desde tu corazón me dice adiós un niño.
Y yo le digo adiós.

Então... “Yo me voy. Estoy triste; pero siempre estoy triste.” Não é lindo isso?

A pergunta lá de cima nos permite inúmeras respostas. Cada um de nós, talvez, tenha a sua própria resposta. Jamais tentaria aqui igualar-me à cátedra de tolos que tenta reduzir questões humanas a isto ou aquilo, a x ou a y. Minha ideia é desaguar, provocar, dividir e certamente foi a mesma intenção da Lisi, quando me perguntou. Então, lembrei de Foucault: A psicologia nunca poderá dizer a verdade sobre a loucura, pois é a loucura que detém a verdade da psicologia.

Yo me voy, era isso, meu amigos.


Obs.: Nas fotos que compõem esta postagem estão Frida Kahlo e Diego Rivera.

sábado, 6 de novembro de 2010

WELCOME SIR JAMES


Em Porto Alegre não se fala em outra coisa: Paul McCartney está entre nós. O ex-beatle desembarcou no Salgado Filho hoje às 11h15min e aviões sobrevoam o céu da Capital dando as boas-vindas ao Sir James Paul, com a frase: Welcome Paul McCartney.

Entrando no clima com muita acidez e pouca paciência, O CÉU DO INFERNO homenageia o velho guerreiro (que não é o Chacrinha), com um vídeo do eterno King of Pop:


Here come old flattop, he come grooving up slowly
He got joo-joo eyeball, he one holy roller
He got hair down to his knee
Got to be a joker he just do what he please

He wear no shoeshine, he got Toe-Jam football
He got monkey finger, he shoot Coca-Cola
He say "I know you, you know me"
One thing I can tell you is you got to be free

Come together right now over me

He bag production, he got walrus gumboot
He got Ono sideboard, he one spinal cracker
He got feet down below his knee
Hold you in his armchair you can feel his disease

Come together right now over me

Right

He roller-coaster he got early warning
He got muddy water, he one mojo filter
He say "one and one and one is three"
Got to be good-looking 'cause he's so hard to see

Come together right now over me

(9x)
Come together, yeah

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

DA SÉRIE: PORTUGUEZES (PARTE DOIS)

Eu não faço a menor ideia de quem é o Cid Martins, mas ele também não faz a menor ideia de quem eu seja e, principalmente, do que seja o racismo, então está tudo tranquilo.


Neonazistas contra o racismo.

#zerohorafail

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

NÓS NOS DIZÍAMOS: EU GOSTO DE TI TANTO, QUE NEM SEI QUANTO


O CÉU DO INFERNO tem encorajado-me a fuçar nas caixas, cheias de tanta vida, onde guardo tudo o que eu e minha amiga Maria do Carmo Nogueira escrevemos um para o outro, ou juntos. A Carmo faleceu em 2004 e até hoje não consigo lidar com estes papéis todos muito bem. Tampouco consigo colocar nossa relação em um espaço determinado, nunca conseguimos e nunca conseguirei definir o tempo quando o assunto é minha amiga chegada.

Certa vez, em 2003, pegamos duas latas, destas pequenas - de balas - uma para mim e outra para ela. Assim mesmo, singelamente. Dentro da minha eu colocaria o que eu quisesse, para que a Carmo lesse ou recebesse na noite de Natal, que passaríamos separados. Dentro da dela, o mesmo para mim.

A que dei para ela, nunca voltou para mim, nem mesmo dentro das coisas que recebi da Carmo quando ela faleceu, uma pena (ou não). Mas a que ela me deu, encontrei hoje dentro de uma das caixas cobertas de pó e saudade. Uma lata verde (Flópi Diet - sabor limão - sem adição de açúcar). Dentro dela uma folha (metade de uma A4), cor azul, dobrada em várias partes. Nela estava escrito o seguinte poema, que li no Natal de 2003, enquanto esperava o Papai Noel:

Antes de ti...

O que havia antes de ti
Quem era eu?
Não, não sei...
A chuva que lava este verão
Tua alma chuvosa
Alagada
Vindo ao meu encontro
Um tanto afogada

O que havia antes de ti
Quem era eu?
Não! Não direi mais
Não sei
Porque antes de ti
Uma parte de mim
Não era...
Ou quem sabe
Dormia
Verão, sem ti?
Não, eu não seria...
Pois em ti respiro
Quando estou feliz
Quando estou naufragada
Sim, antes de ti
Uma parte de mim
Dormia.

Te adoro, Carmo.


Debaixo da lata verde, um poema conjunto nosso, datado de 17.06.03 (em itálico o que a Carmo escreveu):

Dia e noite
Como um Pronto Socorro
Inscrito nos céus
Há um tempo longinquo
Serão quantas
As vidas vividas?
Quantas ainda serão
As noites
E os dias?
Ah, tempo mítico!
Aguentai-nos
Vinte e quatro horas por dia
Um por vez
Com intervalo
De insones madrugadas
Desenhadas nas nuvens
Como mandalas no céu
Ah, tempo...
Que o vento não leva
Que tatua e fere
Arrastado e denso
Aguentai-nos
Dia e noite
Como somos