O CÉU DO INFERNO tem encorajado-me a fuçar nas caixas, cheias de tanta vida, onde guardo tudo o que eu e minha amiga Maria do Carmo Nogueira escrevemos um para o outro, ou juntos. A Carmo faleceu em 2004 e até hoje não consigo lidar com estes papéis todos muito bem. Tampouco consigo colocar nossa relação em um espaço determinado, nunca conseguimos e nunca conseguirei definir o tempo quando o assunto é minha amiga chegada.
Certa vez, em 2003, pegamos duas latas, destas pequenas - de balas - uma para mim e outra para ela. Assim mesmo, singelamente. Dentro da minha eu colocaria o que eu quisesse, para que a Carmo lesse ou recebesse na noite de Natal, que passaríamos separados. Dentro da dela, o mesmo para mim.
A que dei para ela, nunca voltou para mim, nem mesmo dentro das coisas que recebi da Carmo quando ela faleceu, uma pena (ou não). Mas a que ela me deu, encontrei hoje dentro de uma das caixas cobertas de pó e saudade. Uma lata verde (Flópi Diet - sabor limão - sem adição de açúcar). Dentro dela uma folha (metade de uma A4), cor azul, dobrada em várias partes. Nela estava escrito o seguinte poema, que li no Natal de 2003, enquanto esperava o Papai Noel:
Antes de ti...
O que havia antes de ti
Quem era eu?
Não, não sei...
A chuva que lava este verão
Tua alma chuvosa
Alagada
Vindo ao meu encontro
Um tanto afogada
O que havia antes de ti
Quem era eu?
Não! Não direi mais
Não sei
Porque antes de ti
Uma parte de mim
Não era...
Ou quem sabe
Dormia
Verão, sem ti?
Não, eu não seria...
Pois em ti respiro
Quando estou feliz
Quando estou naufragada
Sim, antes de ti
Uma parte de mim
Dormia.
Te adoro, Carmo.
Debaixo da lata verde, um poema conjunto nosso, datado de 17.06.03 (em itálico o que a Carmo escreveu):
Dia e noite
Como um Pronto Socorro
Inscrito nos céus
Há um tempo longinquo
Serão quantas
As vidas vividas?
Quantas ainda serão
As noites
E os dias?
Ah, tempo mítico!
Aguentai-nos
Vinte e quatro horas por dia
Um por vez
Com intervalo
De insones madrugadas
Desenhadas nas nuvens
Como mandalas no céu
Ah, tempo...
Que o vento não leva
Que tatua e fere
Arrastado e denso
Aguentai-nos
Dia e noite
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