terça-feira, 19 de outubro de 2010

OS DESTROÇOS DE TEUS PLANOS



Hoje compartilho com vocês o belíssimo poema "Para além do Cabo Não", o segundo dos "Três poemas portugueses" de Eduardo Alves da Costa. A mim toca muito. Espero que gostem. A tela que compõe esta postagem (acima) é do artista plástico Fernando Karam, bajeense como eu. Nada mais perfeito para acompanhar este lindo poema.

Para Além do Cabo Não

Perdoa-me, paizinho, por eu
não ser o que tu querias.
Se estivesse em mim, juro
que interrompia o salto sobre o muro
deste meu fluir inconstante,
para que tuas mãos se pusessem calmas
e pudesses gozar tuas certezas.

Mas, se nem mesmo eu
estou certo da Beleza
e com ela trabalho, sem garantia,
vinte e quatro horas por dia!
Sei que meus sapatos estão gastos
e que não fica bem ao bacharel
este papel de saltimbanco.

Não está em mim evitar
o sorriso dos teus amigos,
pousados nos lábios
de retratos mortos; eles,
os que não sabem dos portos
a que minha alma vazia
vai buscar esses nadas
de que é feita a poesia.

Há os que têm filhos loucos,
tartamudos, pródigos, pernetas,
mas logo a ti sucedeu o triste fado
de um filho poeta.
Não há como explicar ao mundo
que não o podes manter nos cordéis,
como a sociedade faz a toda gente.

Se eu fosse gago, era só inventar
um susto na infância, um - sei lá -
um tombo, e as pessoas
logo se acostumavam.
Até os que desfalcam bancos
têm os seus motivos: afinal
lamber um monte de notas
acaba por dar em dissonância.
Mas este mal me vem da infância,
do colégio, algo assim
como brincar às escondidas
com o pênis
ou espreitar pelas frestas.

Juro, paizinho, que preferia
ter mantido em segredo
esta compulsão para o espanto.
Esta vertigem epiléptica
em direção ao vácuo.
Diriam: é um vagabundo,
tem lá suas manias, morreu-lhe
a mãe quando criança.
E tu deixavas cair uma lagriminha,
para que a pudessem ver as comadres,
os juízes, a vizinhança,
teus colegas de profissão
e os que, na rua, te
acenam com a mão e têm
sobre mim direitos de cobrança.

Enfim, está feito; já não se pode
evitar que o óvulo engendre este traste
que o mundo insiste em
atirar para um canto.
Só nos resta esperar à beira
do cais que os destroços
de teus planos me cheguem às mãos.

Se tiveres paciência,
ficamos os dois a beber
um caneco, sem mais intenções;
e te prometo fazer
de alguns barris sem fundo
e uns sacos de farinha
uma nau, como as dos velhos tempos,
em que teus antepassados,
tão sem medo, olhavam para o mundo
não com olhos de merceeiros
mas à espera do milagre
que apartasse o não do cabo Não;
e, para além do abismo previsível,
plantasse o sonho
- que é matéria
de que teu filho se compõe.

2 comentários: